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Haver... Havia.... Não era grande coisa... Mas haver havia...
Em finais de Dezembro, tive oportunidade de ir ao Teatro Aberto assistir à peça “O Pai” - foi uma das prendas que dei à “velha” – e se por um lado João Perry dispensa apresentações, confesso que, o facto deste contracenar com Ana Guiomar me deixou a pensar no fiasco que se avizinhava.
O facto não se consumou e Ana Guiomar esteve à altura dos acontecimentos. Fiquei surpreendido pela positiva, e muito. João Perry, com aquele seu ar de “acabado” e, uma experiência de anos no teatro, mostrou que era a pessoa certa para o papel. Mas, não me vou alongar com uma espécie de texto pseudointelectual e enfadonho sobre as interpretações deste ou daquele actor. Não me cabe a mim vender a peça...
"O Pai" é uma peça que apresenta, de uma forma clara e sem qualquer pudor, a demência de alguém que, chegado a determinada idade, é apanhado de tal forma numa teia de cenários que se torna impossível distinguir a própria realidade, ou melhor, várias realidades cujo afunilamento na realidade do mundo, na realidade dos outros... se torna impossível.
De facto, e no meio de alguns momentos de humor, dou comigo a pensar no primeiro dia (ainda puto) em que talvez tenha sido levado pela primeira grande avalancha da minha vida... o dia em que o meu pai não me conheceu, o dia em que a realidade deixou de ser perfeita.
“As coisas não estão como eram”... foram as palavras que, confesso, me deixaram pensativo enquanto o autocarro me levava para Lisboa logo após uma época de frequências... imaturidade minha, medo... cobardia... fizeram-me ignorar o lado negro daquele aviso. O Pai sempre me havia ido buscar ao terminal, mesmo quando um dos braços (devido à doença) já o atraiçoava. Naquele dia, foi a mana - “as coisas não estão como eram, o que vais ver não é o pai como o conheceste...”. Tais palavras, ditas com uma frieza clínica, mesmo assim, não me haviam demovido de ver aquele homem forte, aquele exemplo de luta ao longo de uma vida e sempre bem-disposto perante a adversidade. O homem tal como sempre o idolatrara.
O cheiro a sardinhas (prato tão acarinhado lá em casa) antevia mais um jantar em família com a alegria que, apesar de dois anos de derrotas, não havia esmorecido... não havia esmorecido até entrar pelo portão e vê-lo ali, distante... sem alegria no olhar, sem um sorriso no rosto e olhando para mim como se questionando quem era estranha personagem que lhe estendia a cara para um beijo.
“É o Robinson, pai”. É o Robinson pai... e o eco dessas palavras e as lágrimas contidas que deveriam ter corrido como cataratas mas ficaram presas numa angústia que me faria mais tarde fugir de tudo aquilo. Deveria ter chorado, deveria ter-me lembrado da lição de Faulkner e de que um cavalheiro também chora, mas com a diferença que, face aos demais, depois lava a cara.
“As coisas não estão como eram”... não estavam mesmo. As boas notícias, de três semanas de bom trabalho no primeiro ano de faculdade ficaram guardadas para mais tarde... a doença atacara agora a sua alma, mas mais que isso... a sua alegria de viver, a sua capacidade de sorrir, de contar piadas, em suma... de rir da morte.
O Pai, deixara de ser o Pai... e no fundo de mim, por mais que tentasse fugir (e fugi) saberia que nunca mais o teria de volta e a realidade não mais voltaria a ser o que havia sido até então.
Fonte da Imagem: Própria.
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